O pequeno gato deixava transparecer cada vez mais a sua carência, até que um dia lhe trouxeram uma companheira. “Veja só, Neko: agora você tem com quem brincar!”, falava sua dona enquanto mostrava a felina. “Ela se chama Pandora. Acho que vocês serão bons amigos”, exaltava-se.
A dócil Pandora adaptou-se rapidamente ao ambiente de conforto da vida em apartamento. Antes, ela vivia nos subúrbios do centro da cidade. Conhecia muito bem o mundo exterior que o Neko sonhava e desejava conhecer. Os dois tornaram-se muito amigos, mas uma coisa intrigava o felino: como sua companheira, que sempre teve liberdade, poderia ter se adaptado tão bem a um estilo de vida calcado no conformismo do marasmo doméstico? Quando ela dormia, estes pensamentos o dominavam e ele perdia o sono.
Nos dias de insônia, Neko gostava de olhar para a lua. Desejava, como uma criança impaciente por um doce, conhecer tudo o que existia fora daquele lugar. Refletia tão alto, que vez por outra um miado angustiado escapava e acordava Pandora, que logo corria perto dele pra curtir as noites serenas. Ela lhe falava do mundo exterior e ficava fascinada em ver sua sede por liberdade. Aos poucos, a gata percebeu o quanto o influenciava. Mais do que isso, ela controlava seu companheiro por completo, e acabou se tornando a voz que lhe sussurrava ordens.
Existia uma estranha reciprocidade entre os dois. Neko pensava e refletia muito; Pandora era impulsiva e arriscava-se mais. Ambos se completavam, e era isso que os unia. Ela apaixonou-se por ele, que por sua vez, amava ouvir suas histórias. Tudo parecia perfeito, contanto o detalhe que Pandora flertava com Neko, enquanto ele flertava com a janela, a sedutora ‘porta de entrada’ para o mundo exterior.
Por mais estranho que pudesse ser, Pandora começou a ficar com ciúmes da janela. Não durou muito tempo para que a gata tivesse uma ideia um tanto quanto inocente, apesar de ela julgar como genial. “Vou mostrar a ele que não é preciso ter medo de cair, mesmo sem a tela de proteção atrás do vidro”, refletia. Assim, ela ganharia mais atenção dele, que estava com os pensamentos cada vez mais distantes.
Os dias seguintes nunca mais foram iguais. Todas as noites, enquanto ele olhava vidrado para a lua, ela desfilava lentamente na janela enquanto encorajando-o a vencer seus medos. “Se eu, com minha vida agitada, consegui me adaptar a esta casa, por que o Neko não tenta algo parecido ao vir para a janela observar o que existe lá fora?”, pensava ela, ingenuamente. Ele tentava resistir, mas a proposta era sedutora demais. Afinal, para Pandora aquilo tudo era muito fácil. Por que não tentar?
Um belo dia, Neko decidiu se arriscar a conhecer um pouco do mundo exterior com toda a lucidez possível: sem a espessa tela na janela. Pandora ficou feliz com sua decisão e pensou que finalmente conseguira conquistá-lo por completo ao fazê-lo vencer seu medo. Naquela noite, ele finalmente pôde ver e sentir um pouco o mundo que nunca conhecera. Ficou extasiado e os olhos encheram-se de lágrimas.
Calou-se.
Caiu.
Não resistiu.
Pandora não conseguiu evitar o acidente e sentiu-se culpada pelo que aconteceu. Lembrava-se de Neko e da figura japonesa do gato que acena como estivesse se despedindo. Também se lembrava da figura da mitologia grega que mexeu com o que não deveria. Tudo era muito irônico.
Talvez o erro tenha acontecido quando um quis ser exatamente igual ao parceiro: ela querendo invadir os pensamentos dele, e ele se arriscando como ela. Provavelmente nunca saberemos se o que matou o gato foi a curiosidade, a felicidade, ou se foi Pandora.
Cara, que desenrolar legal dessa história, quando comecei a ler fiquei pensando no que poderia refletir e aí você conseguiu surpreender no final. Temos vários caminhos e realmente é difícil escolher só um, vai de cada um imaginar. Acho que Pandora fez a parte dela encorajando o Neko, no entanto o que talvez tenha sido fácil pra gente não terá o mesmo resultado com o próximo.
ResponderExcluirUm beijo, muito bom o post ;*
Talvez o erro tenha sido o desejo que Pandora tinha em moldar a personalidade de Neko para que ele fosse igual à ela. É como você disse: o que é fácil para alguns pode não ser para outros. Fazendo um paralelo, isso acontece muito com os próprios relacionamentos amarosos.
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado do post! Essa história estava praticamente estruturada na minha cabeça, mas ainda estava com dúvidas sobre o final. Pensei em deixar essa incógnita para dar margem a uma interpretação pessoal de cada leitor.
Um beijo.
Sim, e acho que se encaixa naquele curta que eu te repassei ontem. Fazendo uma ligação com o texto do apego, o curta e seu texto as diferenças se completam, é assim que é pra ser, no entanto acaba acontecendo o contrário. Queremos transformar a pessoa em questão em um espelho nosso. Se fosse assim (pode parecer patético), mas os gêmeos teriam a mesma personalidade e pode ver que aparentemente eles são iguais, mas tão diferentes ao mesmo tempo.
ResponderExcluirDá pra refletir em N casos com esse texto!
Muito bom mesmo, beijo! ;*